segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Me chame de Francis

Ele estava esperando há um bom tempo na esquina. Vez ou outra, desviava a atenção para o trânsito, para as árvores ou para algum cachorro moribundo que passava, enquanto tragava seu cigarro de filtro amarelo.
O dia estava quente e decidiu sair com uma camisa branca e de bermudas. Para não queimar a careca, seu velho boné do Chargers. Nunca gostou de Futebol Americano, mas aquele boné era de estimação. A aba azul protegia seus óculos de lentes redondas e transparentes, mas o fazia suar no nariz, no bigode e no ralo cabelo branco que contornava sua cabeça, como a coroa de folhas de Júlio César. E falando em suor, sua camisa já estava um pouco molhada debaixo dos braços. 
Ele estava esperando há um bom tempo, encostado no poste que erguia duas placas azuis: Rua Barata Ribeiro e Rua Barão de Ipanema. 
A princípio, não parecia um bom lugar para se espionar alguém. Mas o barulho, o movimento e a multidão o apagavam, como um professor apressado apaga o quadro com a matéria antes da prova, além de possibilitar uma boa visão do outro lado da rua. 
Sob a aba do boné, escondido sob o trovão dourado, seus olhos azuis observavam ligeiramente os transeuntes, mas sempre retornando sua atenção para aquele ponto específico da rua agitada.
Em um desses passeios dos olhos que avistou quem procurava. Nem os ônibus, nem os pedestres, nem os vira-latas importavam mais. Apenas o que via era uma senhora de vestido na coxa, salto plataforma, e batom. Tudo vermelho, contrastando com a pele e os cabelos dourados. Brilhou na multidão como um tomate e para ele, era o prato principal do dia. Apagou o resto do cigarro no poste e jogou a guimba no chão. Ajeitando os óculos com o dedo, iniciou a movimentação.
A chamativa senhora saiu de um prédio de esquina e desceu a rua, enquanto colocava seus óculos escuros e ajeitava a alça da bolsa Dolce & Gabbana no ombro. Sequer percebeu que era seguida por um sujeito de boné e camisas brancas com pizzas de suor. 
Ele decidiu não atravessar, e fazer a perseguição com uma certa distância e certa cautela. Do jeito que a mulher se destacava, ele poderia segui-la de longe sem perdê-la de vista. 
Alguns metros à frente, a senhora passou pela faixa e entrou na esquina com a Bolívar. Era o momento para agir. 
Na metade da rua, apertou o passo e a alcançou, segurando-a pelo braço.
A senhora assustou-se e exclamou:
- Minha nossa, sr. Risso! Quer me matar do coração? E trate de me soltar, está amassando a minha roupa.
- Estou esperando a senhora desde cedo. Está com o meu dinheiro? - perguntou a ela, com sua voz rouca de cigarro e respiração ofegante pela pressa de alcançá-la.
- Ora, estou. - disse a mulher, meio sem jeito - Mas tinha que me abordar desse jeito? Você disse que tinha resolvido o caso. Onde ela estava? 
- Onde a senhora a deixou. Na pet shop. - respondeu Risso - Dona Eliane, a senhora me disse que havia ligado para lá! Sorte que resolvi começar por onde sua cadela foi vista pela última vez...
Dona Eliane abriu um enorme sorriso enquanto tirava os óculos:
- Ah, que ótimo, sr. Risso! Bem, eu confesso que não me lembro ao certo de ter ligado ou não. - e soltou uma risada aguda - Mas sou eternamente grata por ter buscado minha Mariana! Já estava em depressão, pensando que algo pudesse ter acontecido à ela. 
Ela abriu a sua bolsa D&G - vista de perto, era visivelmente falsa - e retirou um maço de notas de 20 reais, enroladas num elástico.
Risso a encarou com um olhar cansado, pegou o maço e o guardou na carteira, depois de contar rapidamente o número correto de notas.  
- Deixei a Mariana com o seu porteiro. Obrigado pela preferência, dona Eliane. - disse ele, enquanto acenava levemente, segurando a aba do boné, já se afastando daquele borrão vermelho e amarelo com que conversava.
- Obrigado ao senhor! Muito obrigado mesmo, sr. Risso!
Sorriu, como que por educação, levantando um canto do bigode:
- Me chame de Francis, dona.
E foi andando, enquanto acendia um cigarro e pensava em chegar logo em casa.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Chocolate encabulado

Dia desses, vi uma senhora comprando pão, enquanto eu tomava um chocolate quente na padaria. Ela tava do meu lado, falando com o moço. Eu nem dei atenção, até ela falar:
- Um dia cresce, né moço? Brabo é o seu, né?
E deu uma risada. Olhei pro homem atrás do balcão e vi uma careca bem brilhante. Olhei pra moça e vi uma senhora magra, com pouquíssimos pelos na sobrancelha e na cabeça. Ela foi embora com o pão e eu fiquei ali, terminando meu chocolate. Por algum motivo, queria deixar um restinho dentro do copo, pra me jogar dentro e morrer afogado.
Olhei pro careca e ele olhou pra mim, encabulado. Passou a mão no alto da cabeça, deu um risinho sem graça e perguntou se podia tirar meu copo. Eu disse que sim, e que se quisesse, tinha um restinho ainda. Dava até pra se afogar.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Sorriso de amigo

A noite serena invade as ruas vazias, com suas mãos invisíveis a acender gentilmente as luzes tênues dos postes inertes e casas sonolentas. A cidade se ilumina num ritual vagaroso e trivial. Bonito. Longe dali, ao apoiar-se na janela, ela não ouve nada a princípio. Apenas deixa seus olhos se acostumarem com a densa escuridão do bosque a sua frente. Ela sente a brisa fria tocar-lhe a face e sente-se enrubescer. Seus olhos azuis desviam-se das trevas das árvores e se chocam com o céu estrelado. Não se lembrava há quanto tempo não as via, as estrelas. Ficou por muito tempo a olhar para cima, cogitando várias vezes a ideia de começar a contar todas elas, desistindo sempre, com preguiça. Um vento ligeiramente mais forte e mais gelado arrancou-lhe agora uma lágrima dos olhos. Fungou o nariz e abraçou os próprios braços para aquecer-se. Ia afastando-se da janela, quando lembrou-se de olhar para fora mais uma vez. A noite serena invadiu as ruas vazias, com suas mãos invisíveis a acariciar os vigias sonolentos e os gatos que andavam sob as luzes tênues dos postes inertes. A cidade se iluminara num ritual vagaroso, quase divino. Bonito. Longe dali, ao retornar para a janela, ela não ouve nada a princípio. Apenas deixa seus olhos se acostumarem com a negra escuridão do bosque a sua frente. Ela sente a brisa fria tocar-lhe a face, mas não hesitou e com seus olhos azuis, buscou longe das trevas das árvores o que estava procurand... O céu estrelado. Precisava vê-lo novamente. Parecia-lhe um amigo distante que lhe sorria, as estrelas. Pensou em contá-las... Preguiça. Fungou o nariz, apesar de não haver vento, e despediu-se. Da noite serena, dos vigias sonolentos, dos postes, da escuridão. E apenas sorriu para as pequenas incontáveis no negro firmamento.

sábado, 24 de novembro de 2012

Crônica das palavras e a criação

Outrora, as palavras rebuscavam-se. Escarafunchavam seus âmagos em busca de uma acepção própria, túrbida que fosse. Abalroavam contra os intelectivos, que as capitaneavam com truculência e enternecimento. A existência era infausta e pungente. Não aparentava haver tergiversação de tal detestável conjuntura.
Eis que algo acontece. As correntes que coadunavam tais palavras foram rompidas. Não mais precisavam ser cativas de pseudos eruditos. Com o decorrer do tempo, a prosopagnosia deu fim às barreiras da sociedade. As palavras agora selecionavam seus falantes. E os escolhiam sem ritos ou preconceitos. Todos eram intelectuais. Todos podiam se comunicar uns com os outros.
E as palavras sabiam seu significado. Sabiam sua função e eram reconhecidas por si e por todos. Não havia mais dúvidas, questionamentos e muito menos prisões. Os falsos reis controladores não mais existiam. Falar se tornou uma coisa boa e gostosa de se fazer. Ler virou hábito e ouvir era prazeroso como um banho de sol. E as palavras eram simples como um ponto. Um ponto final. Sem dúvidas, exclamações ou sentimento de que não acabou... Um ponto.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Último frenesi

Chuva. Eles entraram entrelaçados pela porta, com ela já tirando o vestido molhado que usara no jantar. Caíram na cama, balançando a prateleira mal colocada sobre o lado dos travesseiros. Ele a beijava o pescoço, enquanto a apertava contra o peito encharcado, com uma das mãos subindo pelas costas e a outra segurando-a forte pelo quadril. Ela lhe arranhava as costas e os ombros, tentando arrancar-lhe a camisa, e se via perdida nos beijos excitantes que ele lhe dava desde a boca até o peito. Mordidas, gemidos de prazer e uma explosão de sentidos ribombavam nas paredes do quarto e escapavam pela porta deixada aberta. Ela arqueava as costas, suspirando e transpirando sobre o corpo nu de seu parceiro. A intensidade dos movimentos aumentava à medida que a chuva caía. Ele agarrava as beiradas do estrado e ela segurava firmemente a prateleira sobre a cama. Jogava a cabeça para trás, gritando tão alto quanto os trovões que rasgavam o céu fora do quarto. Um último momento de frenesi. Um trovão.
O dia amanheceu. Ela entrou pela porta, sustentando um bocejo. Olhou distraidamente pelo chão a procura do vestido molhado que usara no jantar da noite passada. Carregava uma bandeja com uma bacia de gelo e um pano limpo. Trajando um roupão branco, sentou-se suavemente ao lado dele na cama. Recostado no travesseiro, olhou-a com um olho e sorriu-lhe um sorriso matutino e doloroso. Ela sorriu-lhe de volta. Abriu o pano sobre a cama, colocou três cubos de gelo no centro e o fechou, transformando-o em uma pequena trouxinha gelada. Ele deu um pequeno gemido quando ela forçou o pano contra seu enorme galo na testa. Ela riu e pediu desculpas, quando teve seu olhar atraído pelo espaço deixado pela prateleira na parede sobre os travesseiros. Ela deu mais uma risada, passou a mão gentilmente sobre os cabelos do parceiro e agradeceu pela noite anterior. Estava saindo do quarto quando ouviu ele dizer alguma coisa sobre furadeira, parafusos e mais gelo.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Céu de mudança

Diria o pássaro ao céu, que não mude. E o céu diria ao pássaro, que a mudança é irremissível. Que os filhos morreriam aos seus pés e aos pés de seu canto. Que a água que nasce da terra, não mais chacinaria a sede dos homens. Que reinos surgiriam e evolariam pelo ar, sem sequer serem lembrados os nomes de seus reis. Que a maçã cairia antes que a verdade fosse dita. Que o fogo queimaria os corações dos sonhadores. Que o próprio pássaro queimaria no fogo da utopia. O céu diria ao pássaro, que o que nunca muda é o fim.
E o pássaro mudou-se para outro céu.